Não hiberno porque não quero fazer figura de urso.

terça-feira, outubro 24, 2006

E continuando:

Copiado de um blog que ja nao me lembro (sorry):

São Tomé, 22 de Junho de 2004

Ex.mo Sr.

Quando passeava no meio de tantos livros, em boa hora trazidos de Portugal pelo Instituto do Livro e das Bibliotecas para mais um feira de livro da lusofonia na minha São Tomé, vi um que me chamou imediatamente a atenção. Chamava-se – chama-se – Equador, e foi escrito ao longo de alguns anos – sei-o agora – depois de muita e aturada pesquisa. Digo-lhe o que me chamou a atenção: aquele magnífico postal de São Tomé antigo que ilustra a capa. Não é todos os dias – pelo menos aqui – que a nossa terra é motivo de tramas romanescas.Comprei-o então e levei-o para minha casa, aqui na cidade que dá nome às ilhas. E li. Como não, quando as palavras flúem a um ritmo que traz a leitura em cada sílaba, como se soubesse o autor do livro a nossa respiração – a nossa, de cada leitor – e a tivesse brilhantemente transposto para o papel?Li e reli, dir-lhe-ei. Numa tarde e numa noite sem que o sono chegasse tal a história que conta quem o escreveu e o que com ela eu possa ter a ver. Li e reli no dia seguinte, quase sem interrupções como se uma febre se tivesse instalado em meus olhos.Mas escrevo-lhe porquê, perguntará? Para lhe dar conta da minha febre, de como gostei do livro, de como a leitura é veículo para o sonho e para outras realidades? Não. Isso já saberá. Escrevo-lhe porque a ficção é tantas vezes verdade, da mesma forma que a verdade parece ser tantas vezes ficção.Permita-me então uma apresentação: chamo-me Gabriel e sou sãotomense. Nasci nestas ilhas há pouco mais de sessenta anos, por cá estudei, por cá trabalho numa dependência do Estado, aguardando a reforma que parece tardar em chegar. Mas não interessará o que sou mas antes de quem vim.A minha mãe chamava-se Mary e chegou aqui há quase cem anos nos braços de outra mulher. Nasceu inglesa num território ainda português, quase como eu nasci sãotomense num mesmo território. Saberá como a nacionalidade de cada um nos é mais dada pelas circunstâncias do que pelo local onde choramos pela primeira vez. Eu, sendo português, nascido na colónia, sei-me mais sãotomense. Minha mãe, portuguesa também de nascimento, sabia-se inglesa pela linhagem materna que a tinha criado.Mas que me interessará esta história genealógica, poderá perguntar-se. Interessar-lhe-á se lhe disser o nome de minha avó: Ann Rhys-More.Ela saiu de São Tomé em 1908 para Ceilão com David Jameson. Imagino o seu olhar no HMS Sovereign of the Seas, perscrutando pela última vez – julgava – as duas ilhas e imaginando um novo destino depois da tragédia. Não saberia essa mulher, minha querida avó, a tragédia que a esperava depois.Como se pode ler no Equador, se não podia David dar descendência ao instinto maternal de Ann, então como poderia explicar a barriga que crescia ao longo dos meses que se seguiram à partida para Ceilão? Da maneira mais simples e mais querida – como um milagre. Não estávamos em 2005, era o início do século XX, e a ciência era tão falível quanto Deus parecia ter um papel bem mais importante nas vidas dos nossos ascendentes. E foi assim, que David protegeu aquele feto como se Deus lhe tivesse permitido a felicidade. Imagino também os sorrisos dos jovens pais, a dádiva que, depois de tanta provação aqui em São Tomé, lhes tinha sido oferecida.Mas não. A criança nasceu com o nome escolhido de Mary ou Louis – em honra a um amigo de São Tomé –, assim o escolhesse quem a deixou conceber, fosse ela menina ou menino. Mas nasceu diferente, não era da gestação que a cor escura se mantinha, não era o roxo da falta do primeiro oxigénio. Era o escuro dos trópicos marcados na tez e no corpo daquela menina.Ann foi obrigada, sob ameaça de morte por parte de David, a vir para São Tomé. Era socialmente um pai, já. E a vergonha foi muita para este novo funcionário do Império Britânico na dita Ceilão. Contou-me isso mesmo minha mãe, como um segredo, antes de morrer: veio no mesmo barco que a tinha levado, olhar para Gabriel mais uma vez, esse que cá tinha ficado, esse sim meu avô. E aqui ficou a viver numa roça que lhe deu guarida – aquela mesma que também já a mesma guarida tinha dado a Luís Bernardo – criando Mary e deitada ao destino que os pecados da carne tinham imposto.Ex.mo Sr. Escritor Miguel Sousa Tavares, espero um dia poder contar-lhe melhor essa história que, decerto sem ter disso dado conta, ficcionou com tanta verdade. Saiba-me admirador e seu

Gabriel